falando do que não se pode falar
sabemos bem o que acontece com qualquer pessoa que expresse alguma opinião crítica de gênero. exemplos de resistência (violenta inclusive) não faltam, e vimos recentemente um caso de uma mulher poderosa e influente ter ventilado sua posição sobre isso e ter toda uma sorte de ameaças, ofensas, recusas, e inclusive uma matéria de capa de jornal colocando o ex-marido e agressor literal dela falando que não se arrependia de ter agredido a mesma, e ter recebido concordância geral porque, nesse caso de mulheres que ousam falar dessas coisas, bater pode.
mas a discordância do lado dela fala de um lado que eu não posso falar, afinal, eu não sou mulher, né?
porém gênero é uma construção social que afeta todo o espectro de existência humana. não dá pra ser canalha e dizer que afeta mais os homens, ou que afeta em igual intensidade, porque somos o lado privilegiado do sistema de gênero, da subjugação das mulheres em uma casta sexual, e de toda uma gama de violências que se assomam sobre elas, mas isso também afeta os homens.
papéis de gênero — como toda construção fictícia — nos são externos e não encontram nenhuma materialidade em nosso artefato biológico que é o nosso corpo. a crença de que reconhecer nossa realidade biológica é desumanizante é uma forma de dar uma característica sobrenatural sobre nossa espécie — e nos faz esquecer nosso papel na natureza, e nossa realidade: somos primatas pouco peludos e mais desenrolados nuns rolê estranháço cheio de brinquedo doido, mas ainda somos primatas. ser humano é biológico e isso não nos diminui em nada — basta qualquer leitura menos superficial sobre qualquer funcionamento de nosso corpo pra ver que plmdds como tudo isso é possível? se a partir daí você quer pôr qualquer coisa metafísica por cima — de alma à chakra ou sei lá esses rolê sacralista moderno — saiba que isso é um puxadinho fictício de um sistema de crença que não nos é inato, e que depende que você acredite nele para que você o reconheça. sem a crença, nada de concreto está mesmo ali — é só uma capinha de fantasia por cima da realidade.
gênero é só mais um exemplo disso. se somos um animal biológico homo sapiens sapiens como qualquer animal biológico seja um pan troglodytes, um canis familiaris, um equus caballus ou até uma periplaneta americana, temos uma realidade biológica que se impõe a todos os membros de qualquer espécie de ser vivo que faça reprodução sexuada, seja uma espécie com dimorfismo sexual ou não. e para além da diferença sexual que existe em qualquer espécie — especialmente aquelas com dimorfismo sexual — os referenciais biológicos estão lá. e eles não são o que chamamos de gênero, são as particularidades morfológicas, genéticas, etc.
gênero aí é só a capinha de fantasia por cima da realidade.
nós homens somos diferentes das mulheres sim. tanto na aparelhagem nos andares baixos, como temos alguns órgãos internos EXCLUSIVE FOR MEN rs, proporções de hormônios diferenciadas, porcentagens de massa muscular e organização esquelética relativamente diferente. tem umas parada aí que dá pra bater o olho de longe e ver, ou bater o olho nuns aparelho ou nuns exame aí que dá pra ver, é claro isso.
então eu tou dizendo que é tudo estanque e fixo em posições invariáveis? claro que não, tá aí aquele maldito gráfico de distribuição estatística que não me deixa mentir e que a natureza gosta de sempre se apresentar daquele jeitinho não-tão-cartesiano. mutações, variabilidades genéticas incomuns, e todas essas graças de sermos parte de um lance chamado VIDA que tá sempre metido com um tantinho de caos nesse rolezinho chamado ENTROPIA.
mas ainda assim, gênero é só a capinha de fantasia.
mesmo sendo eu um homem, se me pedem para dizer o que é que é SER HOMEM e me tirarem a possibiidade de dizer algo que seja da realidade corpórea de ser um espécime macho de homo sapiens, o que me sobra?
aí eu respondo: me sobram estereótipos de gênero construídos socialmente (e como tais, que mudam ao sabor dos ventos dessa belíssima construção humana que é o vendaval da HISTÓRIA).
estereótipos estes que no caso das mulheres são a diferença entre sobreviver não-masoquistamente em sociedade e morrer nas mãos dos poderios de quem controla os papéis de gênero — e haja apedrejamento em nossa malfadada história humana — mas que no caso dos homens ainda é aceitar a realidade da exploração de metade da população e tocar seu papel nisso ou sofrer nas mãos dos mesmos controladores caso você queira brincar fora do organograma que lhe é atribuído ao nascer.
homens que não se encontram em conformidade aos papéis de gênero também “”””sofrem”””” a represália social aplicada pra esse CRIME (e vou usar “sofrer” aqui porque não sei uma palavra melhor, mas deixando claro que não tem olimpíada de sofrimento aqui porque se for assim a gente perde). e temos um vasto rol de perversidades pra escolher no cardápio de maldades humanas para qualquer homem que tente escapar da prisão que o papel de gênero impõe.
e indo nessa analogia, escapar não significa decorar a cela, ou criar um novo pavilhão dentro desse presídio. significa escancarar as grades, escangalhar os grilhões, sair chutando tudo na titela até não sobrar um muro alto sequer.
como homem, entender que o papel de gênero nos limita em nossas possibilidades, nos transforma em cúmplices da exploração e violência e nos coloca em uma posição não-natural contra nossa própria realidade é importante para entender como o gênero em si é só uma ferramenta de controle comportamental desnecessária para nossa existência. a violência intra-masculina é só o exemplo mais cruel e visível dessa ferramenta, mas há nas sutilezas também outras formas de controle — bem mais tranquilinhas de aguentar porque convenhamos: no sistema de gênero que vivemos, nós tamo de patrão, né?
o passo mais difícil ainda acho que é reconhecer essa “realidade fictícia” do gênero. entender profundamente que de profunda ela não tem exatamente nada, que é só uma capa de fantasia sem lastro material algum. chame do que for, mas precisamos desse retorno à nossa realidade biológica não como algo que nos diminui, mas como algo que é absolutamente incrível, complexo, e antes de mais nada: real. qualquer pessoa que se debruça sobre como o universo descambou pra que estrelas produzissem elementos pesados como o ZINCO por fusão nuclear e que depois de explodir em uma supernova ele foi parar dentro de uma glândula exócrina chamada próstata enfiada em nosso corpo e facilmente acessada pelo nosso cu, pô gente, sério que cês não acham que isso é INCRÍVEL o suficiente?
e depois disso, não precisamos mais maquiar o que o gênero é. criar novas categorias (ou celas), vislumbrar tudo como espectros ou parir novas nomenclaturas (ou pavilhões dessa prisão). precisamos entender como abolir o gênero. não como palavra — já que ela ainda serve pra linguística, né — mas como uma forma de compactuar as pessoas em torno de invencionices comportamentais. gênero como entendemos não precisa existir mais. mas antes de abolir isso — como? sei lá! — a gente precisa de uma coisa anterior à tudo que será necessário para chegarmos lá: a possibilidade de poder discutir, debater, questionar e discordar de qualquer outra teoria e crença sobre o assunto.
precisamos poder discordar de qualquer teoria hegemonizante, poder não aceitar crenças como realidades, poder expor posições divergentes e sem correr o risco de violência aplicada que os homo sapiens culturalmente se esmeraram em construir.
se o ateísmo não é mais punível com a morte em alguns lugares talvez seja porque entendemos que a não-crença não afeta em nada quem crê, apenas abre-se uma nova possibilidade de existência que não precisa estar abaixo de um sistema metafísico fictício socialmente construído. e como sabemos que a cultura é uma coisa maleável, temos muitos exemplos registrados de como chegamos onde estamos agora através dessa abertura pro questionamento.
como homens, precisamos entender a natureza do gênero e suas vicissitudes e abrir um debate mais amplo sobre como o gênero nos afeta negativamente, mas também em como o gênero nos coloca numa posição erradíssima com mais da metade da população humana. e precisamos também poder conversar sobre isso entre nós, debater seus impactos em nossa socialização e as formas de controle que são usadas para nos conformar aos papéis fixos que nos são atribuídos e buscar os caminhos para nos desvencilhar disso o quanto antes. não só pro nosso próprio bem, mas pro bem de nossa espécie como um todo.