parábola é só a descrição de um movimento

Raphael Silva Nascimento
4 min readJun 19, 2021

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spoiler: eu sempre fui ruim de matemática

para além da quantização de anos passados desde a fatídica ocasião de seu nascimento, a medição da idade parece ser uma ciência exata (não é) que acopla a suposta regularidade de translação de um corpo celeste — nada mais do que apenas uma repetição de frequência circular e regular de alguma forma — ao movimento de mortificação (no sentido teológico, no caso) que nos acompanha desde a hora exata que nascemos até o seu ponto final. ali que começamos a viver, mas também a morrer.

e isso não é verdade, sabemos. é só um jeito mais simples de dizer as coisas que se graduam de um esquecido primeiro momento à um último que — em sua maioria — tentamos evitar.

e se a idade como numeral não explica tanta coisa assim, e pode ter usos práticos apenas para questões legais e quetais, usar esse número que aumenta todo ano se torna menos explicativo e prático se formos colocar o mesmo como medida de “velhice”.

sim, ficamos velhos e a alternativa todos sabem qual é. mas como esticamos a corda de nossa vida nesse gradiente, em qual momento dessa lida se torna a virada da chave de “ficar velho”?

se idade é só um número, qual medida que se faz do que é se tornar velho. qual parâmetro que podemos dispor para nos aventurar a identificar esse processo crônico de realização aguda em nossas vidas, quando podemos pensar “estou velho” e estarmos certos nessa afirmação e não apenas praticando a hipérbole que floreia os pensamentos banais que sempre nos assolam?

vão dizer que são as dores. e sim, elas surgem. o corpo padece não só por nossas escolhas, mas porque são feitos para isso. as dores nascem onde antes nada estava, as dores se instalam e às vezes nos acostumamos, às vezes lutamos e reclamamos em público, às vezes elas só são como nossas e não-nossas ao mesmo tempo, ocupando um limbo entre o nós somos e o nós temos nossas dores.

disso eu entendo

mas não são as dores boas medidas. primeiro porque podemos ter precocemente, um maquinário biológico carrega em si milhares de anos de pequenas bombas-relógio codificadas microscopicamente em nosso interior. segundo porque dor por dor, temos e sentimos desde nossa mais tenra idade. se nossos nocireceptores nos serve de alguma coisa é justamente pra entender essa realidade como brutal e inescapável desde sempre. elas mudam, claro, mas quem vive, dói. sempre.

e se quisermos escapar do nosso aparato de carne mais aparente e partirmos para algo mais interno — e não menos biológico — e colocar essa medida de velhice nas parafernalhas eletroquímicas misteriosas que se engendram nesse campo tão inexplicável que é nosso pensamento?

ok, aí ampliamos o leque para o terreno metafísico que por vezes tão pouco me interessa, e que — apesar de sermos tão parecidos e tão diferentes enquanto indivíduos limitados pela amplitude da experiência humana — pode se tornar algo ainda mais difícil de se quantizar.

se é da passagem do niilismo pueril para o cinismo eventual, se é da troca do deslumbre pelo acomodamento, ou da transmutação da empolgação juvenil para a preocupação aparente da adultice, isso tudo é uma parábola mental inventada que mais uma vez remete à um movimento gradual. assim como a inércia que leva corpos celestes pelo espaço com quase nenhuma resistência até alguma força causar uma perturbação do momento angular dos mesmos, o pensamento quase quer seguir a física, com a diferença que o vácuo do espaço é mais esparso que o vácuo de nossas próprias cabeças, e o tempo age diferente em escala.

o übervish

e se alguém como eu é do time da compartimentalização, primeiro de tudo: seja bem vindo e não repara toda a bagunça de caixas espalhadas pela vida. viver e encaixotar a experiência se misturam na pior faxina possível que afasta todos os móveis sem nunca lembrar que era pra limpar embaixo da cama que você a arrastou em primeiro lugar. e assim, nessa vivência subdividida, várias linhas do tempo se sobrepõem nesse gráfico nada cartesiano onde ficamos velhos mas ainda somos jovens em tantos estamentos paralelos que nunca sei quando tou velho ou novo demais pra cada coisa.

e finalmente, pra que entender essa virada de chave? de que adianta? o que ela explicaria que não fosse apenas mais uma ficção confortável, uma lorota que nos explicita algo que já sabemos que não é exato? por que insistir no controle e na narrativa se sabemos que nada é aquilo que insistimos em nos contar, se nossos órgãos sensoriais já são criados para nos ajudar a navegar o mundo e afinados para nos enganar, se toda memória é inventada, se toda ansiedade é a insistência em girar o volante de um carro que cai do abismo e não tem pra onde manobrar a não ser pra baixo?

enfim, puta papo de velho chato.

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